Na imensa arena de tensões em que as ações dessas micronarrativas vão se apresentando para o leitor, há também um discurso literário com todas as suas marcas linguísticas que sobrevoam o cotidiano e o sentido primeiro das palavras e convidam o leitor ao refinado exercício de uma leitura polissêmica, ambígua, atemporal, antenada com as grandes questões do seu tempo. Desse modo, a crítica cifrada e indireta é sugerida pelo lirismo da narrativa, ora com jogos de palavras, ora com os recursos sonoros próprios da natureza artística da Literatura. O universo religioso, por exemplo, é provocado em passagens de vários desses microcontos, mas há que se destacar a sonoridade e precisão linguística dessa problematização na micronarrativa "Nutrida": "(...) vive pregando a Palavra sagrada como quem prega um prego na cabeça dos mortais (p.28)". Uma profusão de exemplos da força poética desses textos é facilmente percebida pelo leitor sensível, bem como a reflexão que a própria língua suscita sobre si mesma e sobre o ofício da escrita. É assim que a metalinguagem convida-nos a percorrer os bastidores da criação artística em "Reminiscências": "(...) Lembra-se daquela época? Às vezes me lembro, de outras vezes penso que me lembro, mas estou é inventando histórias, preenchendo os vácuos da mente como um Dom Quixote deslocado no tempo" (p. 86). E são as palavras literárias que insistem em provocar mais e mais o leitor desse tempo de individualismos e de relações tão efêmeras em que a reificação humana e o consumo descontrolado têm se naturalizado de forma espantosa na atividade social. No microconto "Nem enxerga" a alienação é trazida como tema central para a reflexão na leitura: "(...) Consome desenfreadamente, faz do ter o e o seu modo de ser, se locomove no aparente há tanto tempo, que nem se enxerga quando consegue se ver" (p.47). Poderíamos, em cada um desses universos narrativos tão particulares e únicos, apresentar mais recorrências da poeticidade e da riqueza estilística que percorrem os cem contos dessas Cem palavras, textos provocadores e idiossincráticos, mas o que se propõe a partir de agora é que cada leitor percorra estas páginas com a sua memória intertextual e o seu olhar particular para recriar essas estórias e trazê-las sem medo algum para a sua intimidade. (do prefácio de Letícia de Carvalho).