A fugitiva pode ser visto como um livro do luto. Um luto pesado. O protagonista, Marcel, que vem desfiando sua gigantesca teia de passado, se vê, de repente, sozinho. Sua Albertina, “pássaro maravilhoso”, escapa de suas mãos, e vai embora, sem deixar recados. Todo um círculo de ciúme, lamentação e invenção amorosa se abre diante dele. Quando essa construção, que se passa por dentro, no jogo obsessivo entre realidade e imaginação, atinge seu ápice, ele recebe a notícia dolorosa: a delicada Albertina fora lançada, pelo cavalo, contra uma árvore e morrera. Novo círculo, então, se abre, agora recompondo em vários níveis a relação entre os dois, desde os passeios de bicicleta por Balbec até as cartas finais, após a separação. Em Marcel Proust, todo resumo torna-se frágil diante das filigranas do seu estilo, que o leitor já vem acompanhando desde No caminho do Swann, primeiro volume desta monumental obra que é Em busca do tempo perdido. As ambiguidades do sentimento amoroso – entre a necessidade da presença da mulher de sua adoração e o desejo de seu total afastamento, com o filtro venenoso do ciúme – podem dirigir o olhar do leitor para uma narrativa até um tanto patética e doentia. No entanto, os fatos não estão no centro do romance, mas a memória, que preside cada linha traçada exaustivamente ao longo do livro. Uma dor é a separação amorosa, a outra, agora, é o caminho do esquecimento, que a morte preside: “Para me consolar, não era uma, eram inúmeras Albertines que eu deveria esquecer. Quando tinha chegado a suportar a mágoa de perder esta aqui, tinha de recomeçar com relação a outra, a cem outras”. A evocação da mulher se torna o caminho da escrita, até o seu esgotamento total. Proust, neste ponto, é sempre um artista genial, capaz de lançar o leitor a uma série de comparações ou sugestões poéticas e sensíveis que tornam seu texto uma obra irretocável beleza. A partir da fuga de Albertina, ele passa a perseguir suas dúvidas, alimentadas pelo ciúme, também um fonte de prazer intenso, recompondo, como um detetive, todos os passos de sua amada, principalmente sua relação com outras mulheres. E neste trilhar pelo passado, o escritor incrusta um retrato irônico e mordaz da vida mundana parisiense do começo do século XX, com seus salões, jantares e conversas em torno da mesa cujo prato principal são as rusgas de uma aristocracia arruinada e uma burguesia que busca nos aristocratas seu modelo nobre. Esta reedição de A fugitiva, que teve a brilhante tradução do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, um confesso apaixonado pelo estilo do escritor francês, traz ainda prefácio, notas, resumo e revisão técnica do professor da Unifesp e especialista em Proust Guilherme Ignácio da Silva, que traduziu, a partir do texto estabelecido pela Bibliothèque de la Pléiade (1989), os trechos que não constavam da edição utilizada por Drummond. A edição conta ainda com posfácio assinado pelo professor de filosofia da USP Franklin Leopoldo e Silva, além de uma cronologia da vida de Marcel Proust. *Heitor Ferraz é jornalista, professor e poeta.