A Faca entrou: Assassinos reais e a nossa cultura

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Se fosse atribuída a um leitor de Theodore Dalrymple a tarefa de eleger, entre as páginas de seus dez livros já publicados no Brasil, um único relato que ilustrasse os temas que o preocupam e o tom de sua prosa, essa provavelmente seria considerada – tão ricos são os seus escritos – uma missão impossível. Mas, uma vez essa escolha tendo sido feita pelo próprio autor, poucos leitores discordarão da sua pertinência. Neste novo livro, lançado na Grã-Bretanha no segundo semestre de 2017, e que é oferecido ao público como a síntese madura da experiência profissional do Dr. Dalrymple, o título remete à crônica de abertura de A Vida na Sarjeta – justamente a primeira obra do psiquiatra britânico lançada em nosso país. Agora ficamos sabendo que o vício linguístico de evitar a primeira pessoa gramatical ao narrar as ações ruins, metaforicamente transferindo a culpa por tais infrações a objetos inanimados ou abstratos, foi constatado por Dalrymple com enorme frequência e em múltiplas versões. "A faca entrou", diziam os pacientes esfaqueadores, em lugar de "eu o esfaqueei"; "caí na galera errada", diziam inúmeros presidiários em referência aos seus parceiros de crime, sem jamais reconhecerem-se como integrantes da "galera" propriamente dita. O caso sintetiza os temas e o tom de nosso ensaísta: por um lado, o mal da vitimização e a cultura que o reforça; por outro lado, o humor negro de identificar nesses relatos o retirar de uma máscara que ocultava problemas de caráter – os quais todo mundo, no fundo, já conhecia. A destruição do valor da responsabilidade individual tem seus principais cúmplices alvejados por este livro: o paternalismo do chamado Estado de bem-estar social, que supõe serem inaptos à escolha moral os cidadãos economicamente vulneráveis; mas também certo discurso científico que sugere serem inimputáveis os indivíduos classificáveis sob alguma mirabolante tipologia de distúrbios. Dalrymple narra, por exemplo, a ocasião em que teve de refutar em tribunal o testemunho de defesa de um psiquiatra que incidia, sem se dar conta, no raciocínio circular segundo o qual o acusado era um psicopata considerando-se que fez o que fez e só poderia ter feito o que fez considerando-se que fosse um psicopata. Houve casos em que semelhantes especialistas chegaram a negar que o suspeito pudesse ter feito algo que a sua própria defesa já houvera assumido como feito. A Dalrymple coube, em semelhantes situações, fazer o tribunal lembrar-se do óbvio: que, se o acusado foi capaz de apanhar uma arma, carregá-la consigo e dirigir-se até o local onde encontraria a sua vítima, então ele é responsável pelo crime que cometeu. Mas não pareça que o autor se considera intocado pelo mal, um observador neutro de suas manifestações: nestas memórias tardias de seus contatos com a miséria humana, o psiquiatra confessa as suas próprias desilusões – mas mesmo estas se tornam constatações que enriquecem o diagnóstico que ele faz da cultura recente, e fazem os seus textos transbordar de sensibilidade humana. Dalrymple é um defensor da responsabilidade individual e, coerentemente com isto, um admirador da capacidade humana de realizar grandes obras – o que é o mesmo que dizer: da nossa habilidade de fazer o bem e de fazer o mal. Este deslumbre pelo mal é o único estímulo possível a persegui-lo e encará-lo. O psiquiatra lamenta, com humor, que nunca tenha tido a oportunidade de trabalhar em casos que realmente satisfariam o seu fascínio. Esta mesma desilusão é um indício de que a "qualidade" dos crimes na Inglaterra se deteriorou. E em nível reduzido também se situa a reação dos burocratas que supostamente são pagos para resolver o problema. A curiosidade destes pelos detalhes mórbidos dos crimes é movida não por um reconhecimento da responsabilidade individual, mas por simples sadismo.

About the author

Theodore Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels) atuou como psiquiatra em periferia de grandes cidades, em prisões e em países como o Zimbábue e a Tanzânia, além de outros do Leste Europeu e da América Latina. A partir de sua experiência como médico e de sua clara inclinação conservadora, desponta como um crítico cultural e social implacável, avesso à celebrada noção de "Estado de bem-estar social". É membro sênior do Manhattan Institute e colabora com veículos como The Times, The Salisbury Review, National Review, The Daily Telegraph, The Observer e The Spectator. Recebeu o Prêmio da Liberdade, em 2011, na Holanda.

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